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terça-feira, 1 de dezembro de 2009

...EU SEI, MAS NÃO DEVIA (Marina Colassanti)

"Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia:
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundo e a não ter outra vista que não seja as janelas do corredor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não abrir as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltada porque está na hora. A tomar café correndo porque está atrasada. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder tempo. A comer sanduíches porque não dá pra almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar na condução porque está cansada. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para os mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz.
A gente se acostuma a esperar o dia todo e ouvir no telefone não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorada quando precisa tanto ser vista.
A gente se acostuma a andar nas ruas e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir aos comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigada, conduzida desnorteada, lançada na rua infindável dos produtos.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e pelo que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar trabalho, para ganhar mais dinheiro para ter como pagar mais coisas que se cobra.
A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos peixes dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinhos, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai se afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha os pés e sua no rosto e no corpo. Se o trabalho foi duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeita - porque tem sempre o sono atrasado.
A gente se acostuma para não raiar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas e sangramentos, para esquivar-se da faca e baioneta, para poupar a vida que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma."

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